Você se assustou com a minha alteração, eu também me choquei com a sua indiferença. Talvez você nunca venha a compreender a dor contida no meu descontrole e eu nunca venha a compreender a defesa contida na sua frieza.
Mas não estou apreensiva. Estou apenas triste, sentindo algo quebrado dentro de mim, como um trinco em uma porcelana.
Primeiro veio a luz, consumindo tudo - ou nada – que era aquela existência tão desprovida de sensações. Não porque fosse primordial ou necessário que não se sentisse – simplesmente pela impotência rígida que a palidez de sentido das coisas tornara tão comum. Caminhava pelos pensamentos e pelas ideias a figura escura de uma insensibilidade tão terrena, e ao mesmo tempo tão leve.
Depois veio o estrondo daquele clarão cego, e o calor, e o frio momentâneo depois da primeira onda, fazendo com que, uma a uma, as defesas fossem se desfalecendo, caindo, rasgando-se como os gritos loucos que ele ousava gritar sem mexer os lábios, um grito por dentro, derretido, escorrendo pelas janelas que ele deixara abertas na chuva fina que parecia cair dentro(em volta, sobre, tanto, sempre) de sua própria memória.
Havia então defesas, e havia memória. Qualquer coisa de nobre e bonito que servisse de forma empoeirada como um atestado da vaziez que era às vezes tão intrínseca e, às vezes, tão repentina. E todos os escudos, e os altos muros de ferro e pregos negros, grossos, enferrujados, e todas as lanças, e os arqueiros por trás das muralhas, foram assim caindo, perecendo um a um, como se a luminosidade lhes fosse proibida e mortal.
Quando os raios de luz pura cessaram, estava completamente nu. Limpo. Não sentia fome, nem frio, se bem que chovesse lá fora e lá dentro. Os olhos fechados, os pés sensíveis ao toque do piso que era frio, ainda que não de todo desagradável. Havia vento, talvez uma fresta na janela. O som repetitivo de um gotejar próximo. E perfume?
Talvez sentisse perfume. Não diferente daquele cheiro de terra antes seca, ou da madeira velha, comprimida e rachada pelo tempo. Mas um odor renovado, um qualquer cheiro de novo, de renascença. Pensou então que era estúpido pensar em cheiro de renascença, já que não conhecia o cheiro e os detalhes e as rachaduras e as máculas de pedaços de renascença, mas não importava. Renascia, lançando-se de dentro para fora em um cavalgar lancinante e frenético, ultrapassando as barreiras de seu próprio corpo cego e sem tato.
As defesas haviam, portanto, caído. Disso ele sabia. Sabia também que lhe restara apenas seu corpo, e seus passos, que ele tratou de experimentar hesitante. Igualmente hesitante era seu respirar, como se o ar novo doesse no peito enegrecido de fuligem antiga. E então se deu conta de que falava chorava ardia sentia pensava gritava sem vírgula:
-Eu quero a necessidade de me ter e me fazer sem teus gritos e sem tuas falhas e sem meus gritos e minhas falhas e meus pés sujos e minhas unhas esquecidas de cuidado e de amor chorado no colo e sem cessar o clarão que liberta e machuca e repara e me dói e faz crer que você se faz morta mas limpa dentro de tudo o que existe na pele na fala no hálito na lama na cama sua minha nossa.
Calou-se por um momento, pra depois dizer com leveza no rosto e na alma:
-O que constroem teus risos é muito maior que a vontade de te matar aos pouquinhos dentro de mim, embora doa.
Depois pulou pela janela aberta e caiu até que não se visse mais nada. Ribeirão Preto, 24 de outubro de 2011
O sentimento de culpa é uma das causas da sabotagem que a gente faz com a gente mesma. Comendo pelas beiradas, a sabotagem vai protelando decisões pessoais importantes, impedindo envolvimentos com o que ou quem pode nos fazer bem, atrasando atitudes até que percamos prazos de importantíssimos desfechos, fazendo-nos perder oportunidades de todo tipo que a vida coloca no nosso caminho, levando-nos a chutar para longe o que mais desejamos na nossa existência: a felicidade.
A culpa é uma autocondenação por nos sentirmos incapazes de algo (por não revertermos uma situação ruim que criamos, por não termos feito mais por alguém que morreu, por não termos feito algo importante no momento certo, por não termos prestado atenção em algo quando foi necessário, e outras situações), e os sentimentos de mal estar envolvidos já seriam castigo suficiente. Mesmo assim, o sentimento da necessidade de auto-punição pode crescer e sair do controle, fazendo com que, consciente ou inconscientemente, passemos a armar sabotagens de alto requinte, difíceis de serem percebidas, detectadas. É preciso estar muito atento e procurar ajuda profissional, pois a devastação que temos o poder de fazer em nós mesmos – e até nas pessoas à nossa volta – é abissal.
Você pode estar neste momento fazendo isso com a sua vida sem perceber.
Hoje o sono vai demorar pra chegar. Porque hoje a minha vida inteira está tentando caber em cada música, em cada poema, em cada imagem que eu acesso. Em uma noite. Hoje as guardas estão baixas e o tato lê espinho. Hoje os olhos estão secos, mas a alma está marejando e qualquer esforço parece inútil e qualquer meta parece inatingível. O peso das perdas, das frustrações, da desesperança, cai sobre os ombros desprotegidos e faz deitar o corpo em um canto qualquer da casa. O cansaço recusa estratégias e investimentos emocionais, exacerbado pelas decepções. Faltam atitudes, grandes, pequenas, todas. Faltam palavras, pactos, carícias, falta proporcionalidade. E eu vou me entremeando nas brechas que me são disponibilizadas, sem norte, enquanto os dias vão se oferecendo ora iguais, ora piores. Não há progresso nisto, não há saída, e tudo fica em suspensão, como em uma área de monotonia da natureza, onde nada acontece, nenhum som se precipita, nenhuma folhinha mexe, não há vento. O passado e seus inspetores tomam vulto, enchem-se de força e autoridade, e o presente vai minguando debilitado.
A janela do word espera hoje por palavras leves, positivas, animadas. Na falta delas, levanto-me mais uma vez para um café ou talvez um pedaço de doce que sobrou do domingo. Volto a encarar o espaço branco e, definitivamente, não tenho leveza, positivismo e animação hoje para dar.
Não tenho elogios, mas lamentos. Preocupada com algumas coisas, triste com outras, desanimada com terceiras. Tem dia que se somam tantos desarranjos que a alma da gente fica acuada e o corpo se abandona em uma espécie de paralisia, enquanto a mente trabalha sôfrega e contra-producentemente.
Se eu conseguisse ser racional, faria uma lista dos problemas, enumeraria os de solução possível e reconheceria os que não dependem de mim, buscaria conformação e pronto.
Chorar alivia ou enfraquece?
Poderia esquecer o trabalho por alguns minutos e escrever um poema, um conto, uma lista de supermercado, qualquer coisa que derretesse o gelo entre os dedos e o teclado.
Na vidraça, uma rosa suferino me acena, deve ter desabrochado durante a noite, com pulgão e tudo...
Você dá um passo à frente, eu inflamo; quando você avança, eu me encho de uma esperança quase infantil, daquelas que metem medo de desacontecer. Vou lá no futuro, enxergo-o com detalhes impressionantemente reais em cenas coloridas, sonoras, aromáticas, sensitivas. Você atrasa o passo, eu paraliso; quando você recua, eu caio num limbo sem chão, assustador, daqueles de filme que perturba a mente durante a noite. Busco na memória carinhos, fatos e discursos promissores e me agarro neles como quem pede colo de mãe. Mas a coisa toda desacelera aqui dentro autonomamente, até que aconteçam novas fagulhas de esperança lançadas a esmo. Uma montanha russa que, entre uma e outra oscilações vertiginosas, reabre feridas e expõe fraturas. O amor agoniza, desenganado.
A idéia da morte e o medo que ela inspira perseguem o animal humano como nenhuma outra coisa. Em proporção um pouco menor, para algumas pessoas, assim também é com o envolvimento. Fazer piada sobre a morte e sobre relacionamento é uma das formas de negar que eles existem e estão aí com todo o seu peso. E a negação é o Sistema de Defesa mais simplório, em que se substitui o fator psíquico incômodo por uma “nova versão dos fatos”.
É interessante prestarmos atenção nas piadas que as pessoas fazem e, principalmente, nas nossas próprias: entre um e outro gracejo feito sobre coisas sérias, vamos nos expondo e mostrando aos outros até mais do que percebemos sobre nós mesmos...
A nossa fé pode falhar. Até Abraão viu sua fé falhar.
O incidente na vida de Abrão que está em Gênesis, de 12:10 a 13:4, é um instrumento de encorajamento.
Quando Abrão enfrenta a fome, ele vive o seu primeiro teste de fé. Em nenhum momento Abrão é diretamente condenado por sua decisão de descer para o Egito quando a coisa apertou, mas o desenrolar posterior da história deixa claro que suas ações não derivaram da fé. Abrão não consultou a Deus, mas agiu independentemente e nem clamou pelo Senhor. Faltou fé a Abraão também quando ele quis fingir que Sarai era sua irmã em vez de sua esposa. Abrão escondeu-se debaixo da saia de sua esposa para ser protegido e abençoado, ao invés de fazê-lo nas promessas de Deus. No final, aconteceu justamente o que ele temia, pois o faraó acabou se interessando por Sarai. Abraão não foi vítima daquilo que temia; ele foi a causa do que ocorreu. Seu medo do futuro e seu incrédulo plano de ação é que realmente causaram o problema que se seguiu. Muitas coisas que tememos são autoinfligidas.
Deus deixou que Abrão falhasse e escorregasse até que sua situação ficasse aparentemente sem esperanças. E de repente, sem nenhum aviso, Deus interveio na vida de Abrão, trazendo a praga ao palácio do faraó. Sabemos que a fé de Abrão falhou. Mas este fracasso dele não frustrou os planos de Deus para a sua vida. Enquanto nossa fé falha, Deus não falha. Ele compreende as nossas dúvidas perfeitamente, até porque duvidar é muito diferente de negar. Deus abraça a nossa dúvida, a falha da nossa fé, e não muda os planos d'Ele para a nossa vida.
Fé verdadeira em Deus é uma fé que cresce. Portanto, mesmo com a sua dúvida e os seus questionamentos, Deus continuará do seu lado, e depois que a crise interna passar, sua fé se mostrará fortalecida. Com toda certeza.
“Não temas, Abrão, eu sou o teu escudo; o teu galardão será muito grande.” Ribeirão Preto, 20 de julho de 2011
Então você mostra que o amor é só meu, o entusiasmo é só meu. Os planos, os sonhos, o desejo, a dedicação, o zelo. Que o tempo todo tenho estado solitária nos anseios, nos delírios. Eu agora precisava ardentemente que você estivesse ansiando também, delirando também. Juro, eu não sei acender depois que apago, então não me deixa apagar não... Não me deixa apagar. Porque talvez nossos caminhos possam mesmo andar juntos nesse labirinto energético do universo tão difícil de entender e quando você vier me fazer companhia nos sentimentos, tudo precisa estar ainda vivo dentro de mim. Então, não me deixa apagar não. Porque tudo indica que somos para ser. Então... não vá me dizer que você também só vai me dar valor depois que me perder... Não, por favor, você não.
Então fico aqui tentando preencher os momentos que seriam nossos com afazeres inúteis. E faço listas alucinadas, listas e mais listas. Algumas saem da cabeça e chegam a ir para o papel. Listas de ingredientes para um almoço que quero fazer pra você, de orientações e atenções que preciso dar às caçulas, de frases que precisam estar no discurso sobre o amor na comemoração do nosso casamento, de objetos que deverão enfeitar a mesa de vinte lugares em almoços de família. E fico pensando onde posso encontrar bastão de baunilha natural e ralador de noz moscada. Fico ensaiando como ensina-las a cuidar dos cabelos e dos sentimentos. Busco na memória os versículos do capítulo 13 de Corintios 1, perguntando-me quem poderia ler enquanto trocamos as alianças. E imagino flores em vasos individuais, velas em castiçais baixos que enfeitem a mesa toda e não atrapalhem a conversa animada da grande família nos almoços dominicais. Fico nos casando assim, como se pudesse materializar um antídoto para o veneno da distância. E o coração vai ficando espremido, batendo depressa e atrapalhando o raro sono. A incerteza trazida pela ausência me deixa assim insensata, abestalhada, insana, e a esperança vai minguando enquanto assisto a minha insignificância.
E foi assim que eu me apaixonei pelo homem, pela familia, pelas causas, pelas lembranças, pelas graças, pelas dores e pelas tranças nos cabelos negros e fartos das caçulas. Porque a delicadeza de alma neste ser é tão surpreendente, inicialmente, e tão constante, na sequência, que afeiçoar-me é absolutamente inevitável. Evitei fazer espelho, evitei colocar as cortinas da cegueira interna, evitei os movimentos de sedução emocional, evitei encantar-me por pouca coisa. Mas amar este ser é mesmo inevitável. E a vontade é ungir as cicatrizes recém-fechadas, é mostrar o lado cor de rosa dos dias cinzas, é apascentar os pensamentos aflitos que possam manchar o desenrolar da vida. A vontade é pegar a essência nas mãos e soprar ternura, para que ela não se perca pelo cansaço. É esticar redes sob caramboleiras que cantem acompanhando o vento e embalar seu sono como o de um bebê. A vontade é ir à quermesse, ir à igreja, ir à praça e estender toalhas coloridas com cesta de pique-nique cheia de alegria dentro. É esquecer o tempo e deixar que a vida passe sem contar anos, nem desavenças, nem distâncias, e encher de lembrancinhas bobas e bilhetinhos doces a caixinha com a Nossa Senhora na tampa, nobre guardiã. E é assim que o amor tem brindado e blindado a minha existência e me devolvido a esperança na felicidade. "Hoje eu quero amor, o amor mais profundo, eu quero toda beleza do mundo para enfeitar a noite do meu bem." :
Sabe o que está faltando, minha querida amiga? Você perceber o seu valor e parar de se entregar por tão pouco. Você tem aceito ter tão pouco, que perdeu a noção da pessoa maravilhosa que você é e de quantas coisas boas você merece ter. Com isto, você fechou as portas para que novas coisas e uma nova pessoa entre, você passou a nem enxergar as possibilidades que cruzam com você pelas ruas, pelos lugares, pelo seu dia a dia. E estas possibilidades talvez nem estejam enxergando você também, porque você trancou o seu brilho dentro de você para conseguir se submeter a migalhas. Querida amiga, imagine um coração de um vermelho bem lindo e translúcido, um coração gordo, inflado com uma poeira vermelha e cintilante chamada AMOR dentro, e coloque este coração em cima da sua cabeça, derramando esta poeira mágica sobre você. Feche os olhos e sinta esse amor envolvendo você, de você pra você. Faça isso várias vezes por dia, exercite o amor de você pra você. Aceite-se, perdoe-se, tente ver o seu real tamanho e o quanto você merece ser feliz. Preste atenção no quanto você é querida por tantas pessoas; não é à toa que elas admiram você, que elas gostam tanto de você. Você é tão doce, tão carinhosa e gentil com todos, está na hora de ser doce, gentil e carinhosa com você mesma. Outro dia você se perguntou no status do seu MSN “Onde está a minha felicidade?” e eu lhe digo que ela está nesta chave bem aí dentro de você. Abra as portas para o que tem de melhor e feche este alçapão que você pensa ser o único provedor do seu ar. Você merece.
Aconteceram as concordâncias, o toque sense das peles, o encaixe perfeito dos braços e costas em abraço longo, as frases completadas pelo outro, o afago involuntário. A música sumiu, a rua sumiu, as pessoas em volta eram vultos distantes que passsavam ora ou outra. Despidos de todo e qualquer verniz, estávamos em outra dimensão, constatando igualdades e afinidades, trabalhando diferenças, concordando com o inevitável. Vislumbramos nossos dias, nossa cumplicidade, nossos hábitos, nossos momentos; queríamos imediatamente o daqui a um ano, dez anos, todos os anos. As horas se perderam noite adentro, as portas baixaram, o sono silenciou a cidade enquanto nosso peito gritava por vida e por vigília. As mãos recusavam-se a se desatar e os olhos quiseram permanecer abertos indefinidamente. E ficou engraçada a certeza do amor e seu prognóstico. E ficou estranho lembrar que estávamos apenas começando.
Combinado, então. A gente compra um chalé na mata atlântica e constrói ali um pedacinho de céu. Você leva as frutas, eu levo as ervas aromáticas e as flores. Você arranja os tachos de cobre e eu escolho as imensas colheres de pau. Eu trato os cavalos, você ordenha as vacas. Eu acordo a meninada, você coloca pra dormir. Eu costuro cortinas transparentes e você as pendura nas janelas. A cama a gente arruma juntos, pra desarrumar e amarrotar tudo de novo mais tarde.
Iluminados
(Ivan Lins)
O amor tem feito coisas Que até mesmo Deus duvida Já curou desenganados Já fechou tanta ferida
O amor une os pedaços Quando um coração se quebra Mesmo que seja de aço Mesmo que seja de pedra
Fica tão cicatrizado Que ninguém diz que é colado Foi assim que fez em mim Foi assim que fez em nós Esse amor iluminado
O domingo começou assim, um despertar sonado tateando o tênis no armário, com os olhos apertados diante dos raios de sol entrando pelas frestas da janela. A escolha sonâmbula da roupa e a saída pelas ruas quietas do bairro, cumprindo a caminhada diária. Continuou pela ida à padaria, os pães fresquinhos e a fila no caixa bem calma, com as pessoas desaceleradas pela folga. Como qualquer outro dia, trouxe a leitura de um trecho aleatório da bíblia – caiu em Corintios – com o café suave e fumacento embaçando os óculos. Como qualquer domingo, trouxe o despertar vagaroso da casa, com os sons das portas dos quartos, abrindo-se uma a uma. As plantinhas ganharam sua chuva básica – eu sempre tento fingir que é chuva mesmo, pra ver se as engano e elas ficam mais felizes e floridas. A cozinha começou sua tarefa do almoço em família com as águas ferventes, os toques de umas louças em outras, a tijela de salsinha picada ao lado do alho descascado. A mesa da varanda colocou-se a postos com belisquetes, palitos, taças e cinzeiros e as pessoas foram se colocando à sua volta. Como em qualquer domingo. Mas quando a tarde caiu arroxeada e a preguiça se espalhou na frente de um filme na TV, um e outro foi se inquietando e saindo, todos buscando um último acontecimento para o seu final de semana. Aí aconteceu. O anoitecer fez-se dia, agitou cada folhinha da velha paineira em frente e espalhou um pólen diferente, mexendo com a minha alma. Recebi, consciente, a novidade. E respondi naturalmente pelo Facebook: “olá! estou bem, e vc? sim, também estou sozinha, claro que podemos nos conhecer melhor!”
Com toda a minha caipirisse interiorana, deleitava-me com as arvores das ruas caras pelas quais você me conduzia e me mostrava a sua cidade. Aqueles cantos com ares europeus e aquelas padarias requintadas me faziam ajeitar a postura pra tentar ficar à altura de tanta diferença. Eu já estava me acostumando com a parafernália tecnológica do seu carro, com a sua correria insana e com aquela história de você comandar tudo que era vivo e tudo que era inerte. Mas o melhor eram mesmo as árvores, não entendo por que é que elas são tão mais lindas nas ruas de lá. Talvez por carregarem heroísmo em suas histórias de luta no meio de todo aquele concreto. Você ia dirigindo e eu ia sorvendo as cores e as fachadas, como uma menininha que vai pela primeira vez à cidade grande. Porque aquela cidade era diferente das que eu conhecia, ela era a sua cidade. E quando você colocou na minha mão aquela aliança com três pedrinhas, eu me senti parte daquilo tudo. Dos bares onde tomávamos uísque e comíamos shiitake, da rua cheia de pessoas bonitas, da chuva que apagava o meu cigarro na varanda. E foi com essa mesma caipirisse que eu acreditei em tudo. Nos carinhos, nos planos, nas viagens a negócios, nas histórias da carochinha. Acreditei no acaso, no amor nascente, na sua luta diária, acreditei em cada uma das suas narrações amalucadas. E abri a minha pequena cidade pra você, com seus mares de canaviais verdinhos ondulando com o vento doce. Abri a roda de amigos, abri a porta de casa e abri com paixão as minhas pernas e a minha guarda. Então vieram fotos de amantes, filmes se editando na memória, vieram perdões e reincidências. Veio uma bola na glote e ficou até hoje um gosto amargo na calada boca, que aparece quando eu mordo a língua. Aí eu me lembro de novo das árvores que brilhavam à noite, umedecidas e aromáticas e sinto uma inveja louca delas. Quero brilho, vida e sentimentos de volta e não sei como embrenhar minhas raízes e galhos nesse concreto todo aqui dentro.
Olha, vamos fazer de conta que não significou nada. Mesmo que o anoitecer reivindique velhos hábitos e você relembre as florzinhas de cera na lamparina a óleo feita com o copo de massa de tomate. Mesmo que você passe por uma trepadeira igual a que deveria ter coberto a varanda e eu acabei cortando fora por não saber usar a foice direito. Se alguém cobrir você no meio da noite e se aconchegar, pense antes de dizer o nome porque o meu pode surgir no meio do sono. Tome o mesmo cuidado quando alguém lhe levar o café na cama com uma florzinha do lado e a manteiga em forma de coração. Ou quando a casa estiver cheirando a arroz no fogo e a mesa estiver com toalha branca, copos azuis e o seu prato predileto quase pronto. E também se alguém dançar na sua frente se esquecendo do resto da festa e for se aproximando até abraçar você com desejo e pressa. Se um dia aquele brinco de abelhinha ressurgir depois de tanto tempo na bagunça do seu quarto e lembrar você dos abraços e orgasmos urgentes, será tarde demais, porque eu já me desfiz da outra. Então é melhor você nem se lembrar das manhãs de domingo com cheiro de café com tapioca, com nossas caminhadas e empreitadas. Quando você for ralar côco - principalmente quando você for ralar côco - faça de conta que não significou nada.
Fico tentando entender esse jeito torto do universo tentar dizer alguma coisa e é difícil demais decifrar. Tem a vida lá fora já tão dura e essa vida dentro ocupando o fôlego inteiro inventando fantasmas, adivinhando rejeições que de repente nem houveram, fabricando cortinas negras e colocando na frente dos olhos, prendendo a atenção onde não devia, lançando vetores nas fontes de sofrimento. Em desespero o corpo produz fluidos, as mãos produzem arte e os pés produzem bolhas no excesso do exercício flagelante, a noite produz cavernas assustadoras, prevendo desfechos mirabolantes, tão irreais. A lucidez foge do alcance e deixa campo para o medo do vazio, com todos os ecos aterrorizantes que o acompanham. E a história se repete disfarçada em nova roupagem, disfarçada em diferentes começos, mas implacável na definição final. E felicidade fica uma palavra tão estranha, tão estranha. Que a gente ouve engolindo em seco, afundando os olhos e encolhendo o corpo. A felicidade é nonsense, a linguagem do universo é misteriosa e agora é muito tarde pra tomar café.
E ali estava eu passando por cima de princípios e propósitos, e ali estava você protegido pela decisão de não passar daquilo. E por trás da minha falsa leveza estava todo o peso do meu ser abrindo as portas pra você. Você entrando por todos os buracos do meu corpo, por todas as frestas da minha alma; eu estava inteira ali. As duas realidades internas se estranhando naquele quarto super luxo de motel, tão diversas, tão discordantes. E nem toca você o rebuliço aqui dentro do peito, muito menos essa insônia reencontrando a solidão e constatando o óbvio afastamento depois de satisfeita a curiosidade.
Eu sabia que o terreno era minado e mesmo assim escolhi pisar. Como aquele rouxinol de “Pássaros Feridos”, que com um espinho cravado no peito canta ininterruptamente, mesmo sabendo que o canto acelera a morte. Assim fiz. Confiei meu coração à sua guarda durante aquelas horas. Talvez ainda o faça por sabe-se lá quantas vezes.
Todo o Sentimento
(Chico Buarque e Cristovão Bastos)
Preciso não dormir
Até se consumar
O tempo da gente.
Preciso conduzir
Um tempo de te amar,
Te amando devagar e urgentemente.
Pretendo descobrir
No último momento
Um tempo que refaz o que desfez,
Que recolhe todo sentimento
E bota no corpo uma outra vez.
Prometo te querer
Até o amor cair
Doente, doente...
Prefiro, então, partir
A tempo de poder
A gente se desvencilhar da gente.
Depois de te perder,
Te encontro, com certeza,
Talvez num tempo da delicadeza,
Onde não diremos nada;
Nada aconteceu.
Apenas seguirei
Se depois de tantos anos eu conseguisse o seu telefone, acho que ligaria nesse instante. Porque eu fiquei aqui lembrando a nossa história, com tantos começos, meios e fins, a intenção fajuta de não deixar acontecer nunca mais, e sempre aquelas recaídas deslavadas. A escadaria da Casa do Estudante e tudo o que ela assistiu naquela noite de chuva e calor no Rio de Janeiro, pernas buscando apoio em degraus impossíveis, só para estarmos mais dentro um do outro do que permitia a nossa anatomia. O ranger da madeira velha, a blusa vermelha jogada abaixo, o seu cabelo grudando na minha nuca, o cheiro de velas acesas saindo pelas frestas dos quartos ao som do temporal. E a luz leve que só as nossas pupilas dilatadas pelo medo conseguiam captar. E tudo voltava à vida como um relâmpago quando eu chamava você de volta pelo telefone. A estrada que o trazia sôfrego e inconseqüente, engolia a sua volta sem dizer quando seria a próxima exaustão sobre lençóis suados de motéis baratos. E nos adeuses ficava sempre algo que não permitíamos que se libertasse dos nossos porões mais ocultos. E cada vez que se rompia um pacto, lá estávamos nós comemorando a nossa covardia, viva até hoje. Viva e atuante. Foi ela que não o deixou encontrar nada definitivo e que lhe meteu esse medo do amor e da vida. Foi ela que não me deixou sossegar e me meteu essa mania de desacreditar e de fugir. Mas hoje, se de novo eu acordasse a sua madrugada e a estrada trouxesse os seus delírios, talvez não houvesse mais lugar para nos acovardarmos. Porque de alguma forma a vida há de ter trazido mansidão aos nossos pavores e, quem sabe, algum sol sobre o lodo daqueles nossos degraus.
"Sou um velho diário perdido na areia esperando que você me leia." (Vander Lee)
Rejeitar e recusar-se a conversar são meios poderosos de tirar o equilíbrio, de enlouquecer alguém. São manobras que transferem a loucura das dificuldades de um para o outro, provocando desespero e surto. Quem já se relacionou com alguém que faz isso na hora da crise no relacionamento, sabe exatamente sobre o que estou falando. Sabe como é nocivo esse jogo que visa colocar as neuroses próprias para dentro do outro e o quanto pode destruir além do emocional, se não nos protegermos. É importante não permitirmos que ninguém transponha nossos limites, invadindo nosso estado interior, mesmo que seja desta forma silenciosa. É preciso abraçar sua própria alma e perceber que aquilo não é seu, é da outra pessoa. Blindar-se e não cair nas chantagens que tentam nos fazer sentir culpa pelo que não fizemos. Não chorar, porque o choro convida a outra pessoa a continuar com o jogo. Demonstrar equilíbrio. A única defesa eficiente é manter a serenidade. A serenidade constitui uma barreira que devolve a loucura para a pessoa, voltando-a contra ela; tomar coragem e afastar-se é o que deve ser feito. E ter certeza absoluta que a falta e a dependência que você sente, a outra pessoa também sente, por menos que ela deixe parecer. Só depois de todos os destroços da explosão se assentarem é que será possível pensar e perceber todo o mal feito aos dois lados. Só então será possível conversar, reatar, resolver. Enquanto isto não acontece, só a serenidade vai proteger a integridade. É um bom momento para aproveitar para pensar no quanto realmente este relacionamento está valendo a pena. Mas o mais importante agora é parar para pensar na nossa própria loucura que faz com que nos submetamos a isto.
Tinha as calçadas quadriculadas e árvores com cachos de bolinhas verdes. Uma casa com bela-emília enroscada nos arabescos da grade. Atrás da grade, uma velhinha apoiava-se em uma cadeira para andar pra lá e pra cá, olhando a rua. Ela do lado de lá, o cachorro do lado de cá, as cabeças dos dois acompanhavam os carros e as pessoas que passavam. Às vezes, eles se entreolhavam longamente, perguntando-se se a carroça de leite não ia passar com seus litros de vidro produzindo a canção tilitante da manhã. Tinha o som do piano que vinha da casa da professora de música, bem na entrada da vilinha. Um dia a professora fugiu de casa e foi viver um romance conturbado, mas depois voltou e continuou dando as mesmas aulas, depois de ter se explicado para todas as vizinhas que foram perguntar. Tinha as duas irmãs na casa abaixo, que jogavam tanto veneno de matar formigas, que um dia matou a arara-vermelha da mansão acima. E quase matou o menino asmático que morava em frente. No fundo da casa, as mangueiras do Colégio Marista acenavam com suas frutas avermelhadas, e quando o balanço de ferro do quintal ia bem alto, quase dava pra ver os troncos delas. De vez em quando a meninada se escondia apavorada, porque era dia de peruada e as pessoas desfilavam amalucadas e com os rostos pintados, parecia que o mundo ia acabar. Tinha um posto de gasolina chamado Posto do Bolinha e a padaria do Ney - que depois se tornou a padaria do Silverinho - ao lado. Os carros eram lavados com água quente, saída de canos que passavam dentro do forno dos pães. As enormes mangueiras de água vaporizavam no ar o cheiro dos fornos e, misturado ao cheiro da gasolina azul, ficou na memória de todos que conheciam o quarteirão. E tinha a modista Norma que fazia desfiles de suas coleções, o salão de beleza que começou pequenininho e foi ficando chique, a farmácia onde trabalhava a moça que um dia curou a queimadura da minha mão, que havia deixado o coro no ferro de passar. Tinha a moça da esquina de cima que cortou o pulso por causa do pasteleiro. Tinha a avó das três pestes de Jacareí que vinham passar as férias, sujar as bonecas e espantar os gatos. Tinha as gêmeas nadadoras com seus enormes ombros e seus enormes irmãos nadadores também, que se juntavam aos mais novos e os iniciavam em beijos furtivos atrás das touceiras da casa da perfumista. Até hoje acho que beijo tem aquele cheiro de lavanda. E o som do ensaio da banda do Marista invadia o quarteirão inteiro às 5 da tarde, os bumbos soavam dentro do peito. Quando chovia, a tenda feita de vassouras e rede abrigava estórias de mistério e todo mundo dava trabalho para dormir à noite. Quando veio o amor pelo filho da modista, fiz uma pipa amarela com cola caseira de farinha para conquistá-lo, e a gente ia juntos para a quermesse do Marista, fantasiados de caipiras. E foram anos brincando de pique-esconde e tendo altas conversas, ou pelo menos nós achávamos que eram conversas importantíssimas.
Quando veio o caminhão da mudança, não imaginei que aquele quarteirão me seguiria pelo resto da vida.
Recebi a
triste notícia da morte de Luis Fernando Melo, o menino das pipas de cola de
farinha do texto, aquele menino tão
lindo, com quem eu brincava todos os dias quando pequena e a quem, anos mais
tarde, ouvi tantas vezes tocar e cantar, emocionando-me tanto... Não tinha
contato com ele há tanto tempo, mas a sua morte parece ter arrancado um pedaço
da minha infância neste momento. Triste demais, demais.
Sei que basta decidir fechar as portas pra esquecer e seguir em frente, mas é que você vale tanto a pena, então eu fico protelando isso. Também porque enquanto suas palavras dizem uma coisa, seus olhos parecem dizer outra e isso torna tudo tão confuso. Não sei o que fazer com essa sensação de que você vai mudar de idéia, porque por mais que você diga que não, ela persiste. Sinto que basta um segundo pra eu colocar fim a tudo isso, levantar desta cadeira com andar decidido, trocar a atitude comprometida pela atitude single e sair por aí sem nem pensar em você, mas é que a nossa história é tão linda, tão cheia de afinidades e confiança, tão nossa, que dá uma pena imensa de deixar que se perca. Fechar as portas pra nossa história é uma das decisões mais difíceis da minha vida.
Alheias aos acontecimentos, as abóboras começaram a se espalhar pelo terreno todo, puseram-se a crescer como se pudessem matar a fome do mundo. Mal sabiam elas que as mãos que antes aguavam, as risadas que antes soavam por ali estavam tão distantes. E eu não sei mais andar pelo quintal sem você atrás de mim querendo tudo do seu jeito, implicando com a minha mania de estética na horta, não sei mais pra quem dar abóboras, nem como vou matar essa minha fome de sonho-de-valsa e de amor. Sim, porque em alguns momentos alguns sonhos-de-valsa me consolam muito bem, sabe, acho que eles são meio mágicos. Mal sabia eu que você se espalharia pelo meu corpo todo, invadiria meu armário com meias esquecidas e estatuetas de casais de velhinhos. E quando eu ando na rua, no supermercado, em qualquer lugar, não posso mais encontrar casais de idosos, que eles ficam me cobrando o nosso fracasso. Vou começar a dar abobradas neles. Vou jogar as maiores nos casais de velhinhos pra eles pararem de passar na minha frente, pararem de me agredir com suas histórias de sucesso. Casais de velhinhos deviam pagar multas por isto. Em sonhos-de-valsa.
Você se recostou no batente da porta de saída e de novo tentou me explicar o seu não. Eu havia de novo esquecido o amor próprio e de novo pedia e falava de amor. Entre uma pausa e outra, o pé rolava uma pedrinha contra o chão, quase que acariciando-a, como se o silêncio e a espera fossem mudar o discurso, o clima, a resposta. Eu não olhava os seus gestos, mas adivinhava todos eles enquanto a sua voz baixa e cansada tentava não me machucar ainda mais. A maquiagem se misturava às lágrimas e fazia manchas escuras na blusa, enquanto o carro carregava todo o seu alívio ao ir embora. E eu passei a noite tentando reinventar o esquecimento em planos vulneráveis daqueles que a madrugada costuma fabricar e que de manhã já não valem mais nada.
Um dia, não tinha café no pote, o chuveiro esquentou pouco, desfiou a blusa vaporosinha que eu ia vestir, e eu fiquei olhando longamente pro armário com aquela cara de sapo que nunca viu cobra. Telefone nem devia funcionar de manhã quando não se tem café, mas funciona e tocou. Eu sabia que era você antes de olhar, não sei por que, e comecei a me perguntar se tinha alguma coisa sua esquecida aqui pra você me ligar tão cedinho assim. Escolher o tom da voz naquele horário, impossível, principalmente sem café. Mas escolher tom de voz é o fim do mundo, então pensei que apesar de tudo, não precisava sinalizar a mágoa com as palavras duras que eu ouvi porque ela estava tão esquecida já. Nem precisava fingir que estava feliz e normal porque nada é feliz e normal quando as portas são fechadas de um lado sem dó nem perdão. Não atender não era uma opção porque isso é coisa que machuca e é algo que pra você é normal, mas pra mim não é. Se quisesse o telefone de alguém, teria sido melhor ligar no outro celular porque neste é que eu tenho todo mundo na agenda, e eu não sei como acessar a tal sem interromper a ligação. Será que alguém morreu? Devia ser isso, uma notícia de morte, ai meu Deus, quem será que morreu? A gente já vai logo escolhendo né... Ou então aquela mensagem mal educada que eu enviei e que você nunca respondeu devia ter ficado presa em algum canto do cosmo e só chegou em você depois de tanto tempo. Talvez fosse alguma emergência e você precisasse de alguma coisa emprestada, e claro que eu não poderia negar. Ou então você tinha sentido, por alguma louca sintonia dessas misteriosas, que eu tinha perdido o sono lembrando de nós durante a madrugada. Tinha me visto gozando sozinha fantasiando que era você aqui na minha cama e não essa montanha de almofadas que todas as noites eu tenho que afastar, abrindo caminho pro meu sono difícil. Ou um milagre estava acontecendo e você ia me dizer que assim como eu você não estava aguentando mais de saudade. Perguntei pro fundo do meu ser se não seria melhor nem atender, pra não sofrer mais ainda depois. O fundo do meu ser respondeu que seria melhor mesmo, mas eu já nem ouvi. Atendi sem nem olhar. Compreendi que a próxima noite seria igual à anterior quando a voz desconhecida perguntou se esse telefone era do Luiz Carlos. Compreendi também que não se pode jamais deixar terminar o pó de café.
Então eu caí em uma estranha dimensão, onde falar de amor ofende e provoca surtos de loucura, onde ligações seculares são negadas pelo medo e pela ira inexplicável. Aqui não existe diálogo, nem sensibilidade, nem ética humana. Aqui as tempestades internas são jogadas para dentro do peito de quem mais se ama, e as mágoas são cultivadas indefinidamente. Aqui se perde a noção do que se é e se surta juntamente com os outros loucos, entrando-se em desespero, se a porta de saída não for aberta logo. Mas há os anjos que se insinuam em mãos que acariciam e explicam que basta um cintilar de razão pra sair ileso. Basta se manter sereno e não permitir que a criatura, antes dócil e agora monstro, provoque destruição além do peito. Basta deixar o medroso sozinho ali com seu absurdo e voltar à dimensão da vida, protegendo assim a integridade da alma. E quando ele acordar do pesadelo, terá perdido mais do que pudesse imaginar.
A espera é longa como a madrugada insone, com cada segundo durando horas. Ela é doída e cheia de elocubrações delirantes. O desafio de não ligar pra ele, não ir até lá, não gritar para o mundo o tamanho da dor, não perder o juízo nos comprimidos da gaveta de remédios é quase contundente. Então filmes malucos fabricados no fundo da inconsciência mostram desfechos felizes, cheios de beijos, carinhos, trazendo paz... Então filmes realistas fabricados no raso da consciência mostram desfechos dramáticos, cheios de ausência, solidão, revelando um inexorável nunca mais.
Eu caminhava absorta e quase não vi que alguém deixara cair na calçada um chaveiro de metal com um soldadinho de chumbo. Achei melhor não tocar nele e seguir adiante, ignorá-lo por completo.
Acontece que quando a cabeça começa a tramar estórias, é como coquinho na descida. Afinal, o chaveiro devia ser de alguém que teve uma briga com a namorada no carro, que devia estar estacionado ali naquele lugar ermo de madrugada. Então eles brigaram, e ele jogou o soldadinho à sua própria sorte, já que com certeza fora um presente dela. Ou o chaveiro podia ser de um velho de olhos azuis que teve um brinquedinho carinhosamente guardado pela mãe – que Deus a tenha – por muitos anos, até que fora encontrado no fundo de uma gaveta pela irmã mais nova logo depois do funeral , quando ela estava dividindo entre os irmãos as pequenas lembranças que restaram. Ele transformou em um chaveiro porque o que é que se faz com um soldadinho de chumbo solitário? Fato devia ser que ele sempre se lembrava dos primos brincando com ele na infância toda vez que acariciava o chaveiro. E culpava a mãe por ter guardado algo que agora o aprisionava em lembranças que ele nem queria mais ter. Ou então o chaveiro nada mais era do que uma réplica muito da mal feita, que acabara de ser comprada na padaria pela mãe do menino luxento que, imediatamente após conseguir o que almejava, desinteressou-se.
Acontece que quando a cabeça começa a querer entender as estórias que tramou, é como bola de queimada que bate na boca do estômago: dói, faz buraco.
Então eu dentro do carro ouvindo palavras de chumbo que jogavam fora o amor que eu sentia, eu com a chave titubeante do passado, deixando voltarem lembranças que eu havia já trancado em uma caixinha hermética. Assim como ficava escondido o cuco na portinhola marron enquanto esperávamos sentadinhos no chão chegar a hora inteira e ele saísse cantando. Eu, movida a carência crônica, birrando por qualquer porcaria só pra me sentir amada para, em seguida, descartar como era de se esperar.
E nada matava a fome, porque o buraco não era no estômago, era na loucura que rondava as idéias e suas implicações. Durante todo o dia, não conseguia desgrudar da mente o soldadinho de chumbo abandonado. Desesperador a ponto de ter vontade de voltar lá e tomar posse dele. Desolador a ponto de desejar que nunca o tivesse visto.
Quase não vi. “Mas o quase não deixa”**, como cantava Zé Geraldo.
** Passageiro
(Zé Geraldo/Rui Baiano)
Em um mundo desfeito, o despeito é um direito
A dor é danada, me pegou de jeito
Com a minha esperança, que é uma lembrança
Me lembra a passagem e passou por passar.
Passageiro foi tempo que tanto tentei
Transformar o meu tudo pra te ver sorrir
Passageiro fui eu, em caminho de flores,
Que era teu corpo a me conduzir
Os meus passos eram calmos, minha voz era salmos
Num canto de santo em louvor ao amor
Em meus braços vazios, pedaços de sonhos
Passageiro fui eu, quase morri de dor
Mas o quase não deixa quem ama de fato
Morrer sem retrato da cara do amor
Inventou uma ponte pelo meu caminho e por ela eu vou.