sábado, 28 de maio de 2011

Aconteceu

Aconteceram as concordâncias, o toque sense das peles, o encaixe perfeito dos braços e costas em abraço longo, as frases completadas pelo outro, o afago involuntário. A música sumiu, a rua sumiu, as pessoas em volta eram vultos distantes que passsavam ora ou outra. Despidos de todo e qualquer verniz, estávamos em outra dimensão, constatando igualdades e afinidades, trabalhando diferenças, concordando com o inevitável. Vislumbramos nossos dias, nossa cumplicidade, nossos hábitos, nossos momentos; queríamos imediatamente o daqui a um ano, dez anos, todos os anos. As horas se perderam noite adentro, as portas baixaram, o sono silenciou a cidade enquanto nosso peito gritava por vida e por vigília. As mãos recusavam-se a se desatar e os olhos quiseram permanecer abertos indefinidamente. E ficou engraçada a certeza do amor e seu prognóstico.  E ficou estranho lembrar que estávamos apenas começando. 

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Sonho

Combinado, então. A gente compra um chalé na mata atlântica e constrói ali um pedacinho de céu. Você leva as frutas, eu levo as ervas aromáticas e as flores. Você arranja os tachos de cobre e eu escolho as imensas colheres de pau. Eu trato os cavalos, você ordenha as vacas. Eu acordo a meninada, você coloca pra dormir. Eu costuro cortinas transparentes e você as pendura nas janelas. A cama a gente arruma juntos, pra desarrumar e amarrotar tudo de novo mais tarde.
Iluminados
(Ivan Lins)      

O amor tem feito coisas
Que até mesmo Deus duvida
Já curou desenganados
Já fechou tanta ferida

O amor une os pedaços
Quando um coração se quebra
Mesmo que seja de aço
Mesmo que seja de pedra

Fica tão cicatrizado
Que ninguém diz que é colado
Foi assim que fez em mim
Foi assim que fez em nós 
Esse amor iluminado

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Encontro

O domingo começou assim, um despertar sonado tateando o tênis no armário, com os olhos apertados diante dos raios de sol entrando pelas frestas da janela. A escolha sonâmbula da roupa e a saída pelas ruas quietas do bairro, cumprindo a caminhada diária. Continuou pela ida à padaria, os pães fresquinhos e a fila no caixa bem calma, com as pessoas desaceleradas pela folga. Como qualquer outro dia, trouxe a leitura de um trecho aleatório da bíblia – caiu em Corintios – com o café suave e fumacento embaçando os óculos. Como qualquer domingo, trouxe o despertar vagaroso da casa, com os sons das portas dos quartos, abrindo-se uma a uma. As plantinhas ganharam sua chuva básica – eu sempre tento fingir que é chuva mesmo, pra ver se as engano e elas ficam mais felizes e floridas. A cozinha começou sua tarefa do almoço em família com as águas ferventes, os toques de umas louças em outras, a tijela de salsinha picada ao lado do alho descascado. A mesa da varanda colocou-se a postos com belisquetes, palitos, taças e cinzeiros e as pessoas foram se colocando à sua volta. Como em qualquer domingo. Mas quando a tarde caiu arroxeada e a preguiça se espalhou na frente de um filme na TV, um e outro foi se inquietando e saindo, todos buscando um último acontecimento para o seu final de semana. Aí aconteceu. O anoitecer fez-se dia, agitou cada folhinha da velha paineira em frente e espalhou um pólen diferente, mexendo com a minha alma. Recebi, consciente, a novidade. E respondi naturalmente pelo Facebook: “olá! estou bem, e vc? sim, também estou sozinha, claro que podemos nos conhecer melhor!”





Ribeirão Preto, 23 de maio de 2011

domingo, 22 de maio de 2011

Interiorana

Com toda a minha caipirisse interiorana, deleitava-me com as arvores das ruas caras pelas quais você me conduzia e me mostrava a sua cidade. Aqueles cantos com ares europeus e aquelas padarias requintadas me faziam ajeitar a postura pra tentar ficar à altura de tanta diferença. Eu já estava me acostumando com a parafernália tecnológica do seu carro, com a sua correria insana e com aquela história de você comandar tudo que era vivo e tudo que era inerte. Mas o melhor eram mesmo as árvores, não entendo por que é que elas são tão mais lindas nas ruas de lá. Talvez por carregarem heroísmo em suas histórias de luta no meio de todo aquele concreto. Você ia dirigindo e eu ia sorvendo as cores e as fachadas, como uma menininha que vai pela primeira vez à cidade grande. Porque aquela cidade era diferente das que eu conhecia, ela era a sua cidade. E quando você colocou na minha mão aquela aliança com três pedrinhas, eu me senti parte daquilo tudo. Dos bares onde tomávamos uísque e comíamos shiitake, da rua cheia de pessoas bonitas, da chuva que apagava o meu cigarro na varanda. E foi com essa mesma caipirisse que eu acreditei em tudo. Nos carinhos, nos planos, nas viagens a negócios, nas histórias da carochinha. Acreditei no acaso, no amor nascente, na sua luta diária, acreditei em cada uma das suas narrações amalucadas. E abri a minha pequena cidade pra você, com seus mares de canaviais verdinhos ondulando com o vento doce. Abri a roda de amigos, abri a porta de casa e abri com paixão as minhas pernas e a minha guarda. Então vieram fotos de amantes, filmes se editando na memória, vieram perdões e reincidências. Veio uma bola na glote e ficou até hoje um gosto amargo na calada boca, que aparece quando eu mordo a língua. Aí eu me lembro de novo das árvores que brilhavam à noite, umedecidas e aromáticas e sinto uma inveja louca delas. Quero brilho, vida e sentimentos de volta e não sei como embrenhar minhas raízes e galhos nesse concreto todo aqui dentro.

Raspa-côco

Olha, vamos fazer de conta que não significou nada. Mesmo que o anoitecer reivindique velhos hábitos e você relembre as florzinhas de cera na lamparina a óleo feita com o copo de massa de tomate. Mesmo que você passe por uma trepadeira igual a que deveria ter coberto a varanda e eu acabei cortando fora por não saber usar a foice direito. Se alguém cobrir você no meio da noite e se aconchegar, pense antes de dizer o nome porque o meu pode surgir no meio do sono. Tome o mesmo cuidado quando alguém lhe levar o café na cama com uma florzinha do lado e a manteiga em forma de coração. Ou quando a casa estiver cheirando a arroz no fogo e a mesa estiver com toalha branca, copos azuis e o seu prato predileto quase pronto. E também se alguém dançar na sua frente se esquecendo do resto da festa e for se aproximando até abraçar você com desejo e pressa.  Se um dia aquele brinco de abelhinha ressurgir depois de tanto tempo na bagunça do seu quarto e lembrar você dos abraços e orgasmos urgentes, será tarde demais, porque eu já me desfiz da outra. Então é melhor você  nem se lembrar das manhãs de domingo com cheiro de café com tapioca, com nossas caminhadas e empreitadas. Quando você for ralar côco - principalmente quando você for ralar côco - faça de conta que não significou nada.

Memória da Pele (João Bosco):

domingo, 15 de maio de 2011

Universo



Fico tentando entender esse jeito torto do universo tentar dizer alguma coisa e é difícil demais decifrar. Tem a vida lá fora já tão dura e essa vida dentro ocupando o fôlego inteiro inventando fantasmas, adivinhando rejeições que de repente nem houveram, fabricando cortinas negras e colocando na frente dos olhos, prendendo a atenção onde não devia, lançando vetores nas fontes de sofrimento. Em desespero o corpo produz fluidos, as mãos produzem arte e os pés produzem bolhas no excesso do exercício flagelante, a noite produz cavernas assustadoras, prevendo desfechos mirabolantes, tão irreais. A lucidez foge do alcance e deixa campo para o medo do vazio, com todos os ecos aterrorizantes que o acompanham. E a história se repete disfarçada em nova roupagem, disfarçada em diferentes começos, mas implacável na definição final. E felicidade fica uma palavra tão estranha, tão estranha. Que a gente ouve engolindo em seco, afundando os olhos e encolhendo o corpo. A felicidade é nonsense, a linguagem do universo é misteriosa e agora é muito tarde pra tomar café.

O Dia Seguinte

       E ali estava eu passando por cima de princípios e propósitos, e ali estava você protegido pela decisão de não passar daquilo. E por trás da minha falsa leveza estava todo o peso do meu ser abrindo as portas pra você. Você entrando por todos os buracos do meu corpo, por todas as frestas da minha alma; eu estava inteira ali.  As duas realidades internas se estranhando naquele quarto super luxo de motel, tão diversas, tão discordantes. E nem toca você o rebuliço aqui dentro do peito, muito menos essa insônia reencontrando a solidão e constatando o óbvio afastamento depois de satisfeita a  curiosidade. 
       Eu sabia que o terreno era minado e mesmo assim escolhi pisar. Como aquele rouxinol de “Pássaros Feridos”, que com um espinho cravado no peito canta ininterruptamente, mesmo sabendo que o canto acelera a morte. Assim fiz. Confiei meu coração à sua guarda durante aquelas horas. Talvez ainda o faça por sabe-se lá quantas vezes.




Todo o Sentimento
(Chico Buarque e Cristovão Bastos)
Preciso não dormir
Até se consumar
O tempo da gente.
Preciso conduzir
Um tempo de te amar,
Te amando devagar e urgentemente.
Pretendo descobrir
No último momento
Um tempo que refaz o que desfez,
Que recolhe todo sentimento
E bota no corpo uma outra vez.
Prometo te querer
Até o amor cair
Doente, doente...
Prefiro, então, partir
A tempo de poder
A gente se desvencilhar da gente.
Depois de te perder,
Te encontro, com certeza,
Talvez num tempo da delicadeza,
Onde não diremos nada;
Nada aconteceu.
Apenas seguirei
Como encantado ao lado teu..