segunda-feira, 21 de março de 2011

Meu quarteirão


Tinha as calçadas quadriculadas e árvores com cachos de bolinhas verdes. Uma casa com bela-emília enroscada nos arabescos da grade. Atrás da grade, uma velhinha apoiava-se em uma cadeira para andar pra lá e pra cá, olhando a rua. Ela do lado de lá, o cachorro do lado de cá, as cabeças dos dois acompanhavam os carros e as pessoas que passavam. Às vezes, eles se entreolhavam longamente, perguntando-se se a carroça de leite não ia passar com seus litros de vidro produzindo a canção tilitante da manhã. Tinha o som do piano que vinha da casa da professora de música, bem na entrada da vilinha. Um dia a professora fugiu de casa e foi viver um romance conturbado, mas depois voltou e continuou dando as mesmas aulas, depois de ter se explicado para todas as vizinhas que foram perguntar. Tinha as duas irmãs na casa abaixo, que jogavam tanto veneno de matar formigas, que um dia matou a arara-vermelha da mansão acima. E quase matou o menino asmático que morava em frente.  No fundo da casa, as mangueiras do Colégio Marista acenavam com suas frutas avermelhadas, e quando o balanço de ferro do quintal ia bem alto, quase dava pra ver os troncos delas. De vez em quando a meninada se escondia apavorada, porque era dia de peruada e as pessoas desfilavam amalucadas e com os rostos pintados, parecia que o mundo ia acabar. Tinha um posto de gasolina chamado Posto do Bolinha e a padaria do Ney - que depois se tornou a padaria do Silverinho - ao lado. Os carros eram lavados com água quente, saída de canos que passavam dentro do forno dos pães. As enormes mangueiras de água vaporizavam no ar o cheiro dos fornos e, misturado ao cheiro da gasolina azul, ficou na memória de todos que conheciam o quarteirão. E tinha a modista Norma que fazia desfiles de suas coleções, o salão de beleza que começou pequenininho e foi ficando chique, a farmácia onde trabalhava a moça que um dia curou a queimadura da minha mão, que havia deixado o coro no ferro de passar. Tinha a moça da esquina de cima que cortou o pulso por causa do pasteleiro. Tinha a avó das três pestes de Jacareí que vinham passar as férias, sujar as bonecas e espantar os gatos. Tinha as gêmeas nadadoras com seus enormes ombros e seus enormes irmãos nadadores também, que se juntavam aos mais novos e os iniciavam em beijos furtivos atrás das touceiras da casa da perfumista. Até hoje acho que beijo tem aquele cheiro de lavanda. E o som do ensaio da banda do Marista invadia o quarteirão inteiro às 5 da tarde, os bumbos soavam dentro do peito. Quando chovia, a tenda feita de vassouras e rede abrigava estórias de mistério e todo mundo dava trabalho para dormir à noite. Quando veio o amor pelo filho da modista, fiz uma pipa amarela com cola caseira de farinha para conquistá-lo, e a gente ia juntos para a quermesse do Marista, fantasiados de caipiras. E foram anos brincando de pique-esconde e tendo altas conversas, ou pelo menos nós achávamos que eram conversas importantíssimas.
Quando veio o caminhão da mudança, não imaginei que aquele quarteirão me seguiria pelo resto da vida.
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02 de maio de 2013:
Recebi a triste notícia da morte de Luis Fernando Melo, o menino das pipas de cola de farinha do texto, aquele menino tão lindo, com quem eu brincava todos os dias quando pequena e a quem, anos mais tarde, ouvi tantas vezes tocar e cantar, emocionando-me tanto... Não tinha contato com ele há tanto tempo, mas a sua morte parece ter arrancado um pedaço da minha infância neste momento. Triste demais, demais.




4 comentários:

  1. Eu me lembro de todos os detalhes do seu quarteirão. Sei quem são todas as pessoas que você falou e o meu quarteirão era a algumas quadras do seu.
    Beijos grandes e escreva mais, ficou muito bom!

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