terça-feira, 29 de março de 2011

Covardia

Se depois de tantos anos eu conseguisse o seu telefone, acho que ligaria nesse instante. Porque eu fiquei aqui lembrando a nossa história, com tantos começos, meios e fins, a intenção fajuta de não deixar acontecer nunca mais, e sempre aquelas recaídas deslavadas. A escadaria da Casa do Estudante e tudo o que ela assistiu naquela noite de chuva e calor no Rio de Janeiro, pernas buscando apoio em degraus impossíveis, só para estarmos mais dentro um do outro do que permitia a nossa anatomia. O ranger da madeira velha, a blusa vermelha jogada abaixo, o seu cabelo grudando na minha nuca, o cheiro de velas acesas saindo pelas frestas dos quartos ao som do temporal. E a luz leve que só as nossas pupilas dilatadas pelo medo conseguiam captar. E tudo voltava à vida como um relâmpago quando eu chamava você de volta pelo telefone. A estrada que o trazia sôfrego e inconseqüente, engolia a sua volta sem dizer quando seria a próxima exaustão sobre lençóis suados de motéis baratos. E nos adeuses ficava sempre algo que não permitíamos que se libertasse dos nossos porões mais ocultos.  E cada vez que se rompia um pacto, lá estávamos nós comemorando a nossa covardia, viva até hoje. Viva e atuante. Foi ela que não o deixou encontrar nada definitivo e que lhe meteu esse medo do amor e da vida. Foi ela que não me deixou sossegar e me meteu essa mania de desacreditar e de fugir. Mas hoje, se de novo eu acordasse a sua madrugada e a estrada  trouxesse os seus delírios, talvez não houvesse mais lugar para nos acovardarmos. Porque de alguma forma a vida há de ter trazido mansidão aos nossos pavores e, quem sabe, algum sol sobre o lodo daqueles nossos degraus.

"Sou um velho diário perdido na areia esperando que você me leia." (Vander Lee)

quarta-feira, 23 de março de 2011

Crise

       Rejeitar e recusar-se a conversar são meios poderosos de tirar o equilíbrio, de enlouquecer alguém. São manobras que transferem a loucura das dificuldades de um para o outro, provocando desespero e surto. Quem já se relacionou com alguém que faz isso na hora da crise no relacionamento, sabe exatamente sobre o que estou falando. Sabe como é nocivo esse jogo que visa colocar as neuroses próprias para dentro do outro e o quanto pode destruir além do emocional, se não nos protegermos. 
       É importante não permitirmos que ninguém transponha nossos limites, invadindo nosso estado interior, mesmo que seja desta forma silenciosa.  É preciso abraçar sua própria alma e  perceber que aquilo não é seu, é da outra pessoa. Blindar-se e não cair nas chantagens que tentam nos fazer sentir culpa pelo que não fizemos. Não chorar, porque o choro convida a outra pessoa a continuar com o jogo. Demonstrar equilíbrio. A única defesa eficiente é manter a serenidade. A serenidade constitui uma barreira que devolve a loucura para a pessoa, voltando-a contra ela; tomar coragem e afastar-se é o que deve ser feito. E ter certeza absoluta que a falta e a dependência que você sente, a outra pessoa também sente, por menos que ela deixe parecer. Só depois de todos os destroços da explosão se assentarem é que será possível pensar e perceber todo o mal feito aos dois lados. Só então será possível conversar, reatar, resolver. 
       Enquanto isto não acontece, só a serenidade vai proteger a integridade. É um bom momento para aproveitar para pensar no quanto realmente este relacionamento está valendo a pena. Mas o mais importante agora é parar para pensar na nossa própria loucura que faz com que nos submetamos a isto.


segunda-feira, 21 de março de 2011

Meu quarteirão


Tinha as calçadas quadriculadas e árvores com cachos de bolinhas verdes. Uma casa com bela-emília enroscada nos arabescos da grade. Atrás da grade, uma velhinha apoiava-se em uma cadeira para andar pra lá e pra cá, olhando a rua. Ela do lado de lá, o cachorro do lado de cá, as cabeças dos dois acompanhavam os carros e as pessoas que passavam. Às vezes, eles se entreolhavam longamente, perguntando-se se a carroça de leite não ia passar com seus litros de vidro produzindo a canção tilitante da manhã. Tinha o som do piano que vinha da casa da professora de música, bem na entrada da vilinha. Um dia a professora fugiu de casa e foi viver um romance conturbado, mas depois voltou e continuou dando as mesmas aulas, depois de ter se explicado para todas as vizinhas que foram perguntar. Tinha as duas irmãs na casa abaixo, que jogavam tanto veneno de matar formigas, que um dia matou a arara-vermelha da mansão acima. E quase matou o menino asmático que morava em frente.  No fundo da casa, as mangueiras do Colégio Marista acenavam com suas frutas avermelhadas, e quando o balanço de ferro do quintal ia bem alto, quase dava pra ver os troncos delas. De vez em quando a meninada se escondia apavorada, porque era dia de peruada e as pessoas desfilavam amalucadas e com os rostos pintados, parecia que o mundo ia acabar. Tinha um posto de gasolina chamado Posto do Bolinha e a padaria do Ney - que depois se tornou a padaria do Silverinho - ao lado. Os carros eram lavados com água quente, saída de canos que passavam dentro do forno dos pães. As enormes mangueiras de água vaporizavam no ar o cheiro dos fornos e, misturado ao cheiro da gasolina azul, ficou na memória de todos que conheciam o quarteirão. E tinha a modista Norma que fazia desfiles de suas coleções, o salão de beleza que começou pequenininho e foi ficando chique, a farmácia onde trabalhava a moça que um dia curou a queimadura da minha mão, que havia deixado o coro no ferro de passar. Tinha a moça da esquina de cima que cortou o pulso por causa do pasteleiro. Tinha a avó das três pestes de Jacareí que vinham passar as férias, sujar as bonecas e espantar os gatos. Tinha as gêmeas nadadoras com seus enormes ombros e seus enormes irmãos nadadores também, que se juntavam aos mais novos e os iniciavam em beijos furtivos atrás das touceiras da casa da perfumista. Até hoje acho que beijo tem aquele cheiro de lavanda. E o som do ensaio da banda do Marista invadia o quarteirão inteiro às 5 da tarde, os bumbos soavam dentro do peito. Quando chovia, a tenda feita de vassouras e rede abrigava estórias de mistério e todo mundo dava trabalho para dormir à noite. Quando veio o amor pelo filho da modista, fiz uma pipa amarela com cola caseira de farinha para conquistá-lo, e a gente ia juntos para a quermesse do Marista, fantasiados de caipiras. E foram anos brincando de pique-esconde e tendo altas conversas, ou pelo menos nós achávamos que eram conversas importantíssimas.
Quando veio o caminhão da mudança, não imaginei que aquele quarteirão me seguiria pelo resto da vida.
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02 de maio de 2013:
Recebi a triste notícia da morte de Luis Fernando Melo, o menino das pipas de cola de farinha do texto, aquele menino tão lindo, com quem eu brincava todos os dias quando pequena e a quem, anos mais tarde, ouvi tantas vezes tocar e cantar, emocionando-me tanto... Não tinha contato com ele há tanto tempo, mas a sua morte parece ter arrancado um pedaço da minha infância neste momento. Triste demais, demais.




sexta-feira, 11 de março de 2011

Esquecer



Sei que basta decidir fechar as portas pra esquecer e seguir em frente, mas é que você vale tanto a pena, então eu fico protelando isso. Também porque enquanto suas palavras dizem uma coisa, seus olhos parecem dizer outra e isso torna tudo tão confuso. Não sei o que fazer com essa sensação de que você vai mudar de idéia, porque por mais que você diga que não, ela persiste. Sinto que basta um segundo pra eu colocar fim a tudo isso, levantar desta cadeira com andar decidido, trocar a atitude comprometida pela atitude single e sair por aí sem nem pensar em você, mas é que a nossa história é tão linda, tão cheia de afinidades e confiança, tão nossa, que dá uma pena imensa de deixar que se perca. Fechar as portas pra nossa história é uma das decisões mais difíceis da minha vida.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Abóboras e sonhos-de-valsa

Alheias aos acontecimentos, as abóboras começaram a se espalhar pelo terreno todo, puseram-se a crescer como se pudessem matar a fome do mundo. Mal sabiam elas que as mãos que antes aguavam, as risadas que antes soavam por ali estavam tão distantes. E eu não sei mais andar pelo quintal sem você atrás de mim querendo tudo do seu jeito, implicando com a minha mania de estética na horta, não sei mais pra quem dar abóboras, nem como vou matar essa minha fome de sonho-de-valsa e de amor. Sim, porque em alguns momentos alguns sonhos-de-valsa me consolam muito bem, sabe, acho que eles são meio mágicos. Mal sabia eu que você se espalharia pelo meu corpo todo, invadiria meu armário com meias esquecidas e estatuetas de casais de velhinhos. E quando eu ando na rua, no supermercado, em qualquer lugar, não posso mais encontrar casais de idosos, que eles ficam me cobrando o nosso fracasso. Vou começar a dar abobradas neles. Vou jogar as maiores nos casais de velhinhos pra eles pararem de passar na minha frente, pararem de me agredir com suas histórias de sucesso. Casais de velhinhos deviam pagar multas por isto. Em sonhos-de-valsa.

De novo

        Você se recostou no batente da porta de saída e de novo tentou me explicar o seu não. Eu havia de novo esquecido o amor próprio e de novo pedia e falava de amor. Entre uma pausa e outra, o pé rolava uma pedrinha contra o chão, quase que acariciando-a, como se o silêncio e a espera fossem mudar o discurso, o clima, a resposta. Eu não olhava os seus gestos, mas adivinhava todos eles enquanto a sua voz baixa e cansada tentava não me machucar ainda mais. A maquiagem se misturava às lágrimas e fazia manchas escuras na blusa, enquanto o carro carregava todo o seu alívio ao ir embora.  E eu passei a noite tentando reinventar o esquecimento em planos vulneráveis daqueles que a madrugada costuma fabricar e que de manhã já não valem mais nada.



quarta-feira, 2 de março de 2011

Alô


Um dia, não tinha café no pote, o chuveiro esquentou pouco, desfiou a blusa vaporosinha que eu ia vestir, e eu fiquei olhando longamente pro armário com aquela cara de sapo que nunca viu cobra. Telefone nem devia funcionar de manhã quando não se tem café, mas funciona e tocou. Eu sabia que era você antes de olhar, não sei por que, e comecei a me perguntar se tinha alguma coisa sua esquecida aqui pra você me ligar tão cedinho assim. Escolher o tom da voz naquele horário, impossível, principalmente sem café. Mas escolher tom de voz é o fim do mundo, então pensei que apesar de tudo, não precisava sinalizar a mágoa com as palavras duras que eu ouvi porque ela estava tão esquecida já. Nem precisava fingir que estava feliz e normal porque nada é feliz e normal quando as portas são fechadas de um lado sem dó nem perdão. Não atender não era uma opção porque isso é coisa que machuca e é algo que pra você é normal, mas pra mim não é. Se quisesse o telefone de alguém, teria sido melhor ligar no outro celular porque neste é que eu tenho todo mundo na agenda, e eu não sei como acessar a tal sem interromper a ligação. Será que alguém morreu? Devia ser isso, uma notícia de morte, ai meu Deus, quem será que morreu? A gente já vai logo escolhendo né... Ou então aquela mensagem mal educada que eu enviei e que você nunca respondeu devia ter ficado presa em algum canto do cosmo e só chegou em você depois de tanto tempo. Talvez fosse alguma emergência e você precisasse de alguma coisa emprestada, e claro que eu não poderia negar. Ou então você tinha sentido, por alguma louca sintonia dessas misteriosas, que eu tinha perdido o sono lembrando de nós durante a madrugada. Tinha me visto gozando sozinha fantasiando que era você aqui na minha cama e não essa montanha de almofadas que todas as noites eu tenho que afastar, abrindo caminho pro meu sono difícil. Ou um milagre estava acontecendo e você ia me dizer que assim como eu você não estava aguentando mais de saudade. Perguntei pro fundo do meu ser se não seria melhor nem atender, pra não sofrer mais ainda depois. O fundo do meu ser respondeu que seria melhor mesmo, mas eu já nem ouvi. Atendi sem nem olhar. 
Compreendi que a próxima noite seria igual à anterior quando a voz desconhecida perguntou se esse telefone era do Luiz Carlos. Compreendi também que não se pode jamais deixar terminar o pó de café.

A dimensão do medo


Então eu caí em uma estranha dimensão, onde falar de amor ofende e provoca surtos de loucura, onde ligações seculares são negadas pelo medo e pela ira inexplicável. Aqui não existe diálogo, nem sensibilidade, nem ética humana. Aqui as tempestades internas são jogadas para dentro do peito de quem mais se ama, e as mágoas são cultivadas indefinidamente. Aqui se perde a noção do que se é e se surta juntamente com os outros loucos, entrando-se em desespero, se a porta de saída não for aberta logo. Mas há os anjos que se insinuam em mãos que acariciam e explicam que basta um cintilar de razão pra sair ileso. Basta se manter sereno e não permitir que a criatura, antes dócil e agora monstro, provoque destruição além do peito. Basta deixar o medroso sozinho ali com seu absurdo e voltar à dimensão da vida, protegendo assim a integridade da alma. E quando ele acordar do pesadelo, terá perdido mais do que pudesse imaginar.

terça-feira, 1 de março de 2011

A espera

A espera é longa como a madrugada insone, com cada segundo durando horas. Ela é doída e cheia de elocubrações delirantes. O desafio de não ligar pra ele, não ir até lá, não gritar para o mundo o tamanho da dor, não perder o juízo nos comprimidos da gaveta de remédios é quase contundente. Então filmes malucos fabricados no fundo da inconsciência mostram desfechos felizes, cheios de beijos, carinhos, trazendo paz... Então filmes realistas fabricados no raso da consciência mostram desfechos dramáticos, cheios de ausência, solidão, revelando um inexorável nunca mais.