Primeiro veio a luz, consumindo tudo - ou nada – que era aquela existência tão desprovida de sensações. Não porque fosse primordial ou necessário que não se sentisse – simplesmente pela impotência rígida que a palidez de sentido das coisas tornara tão comum. Caminhava pelos pensamentos e pelas ideias a figura escura de uma insensibilidade tão terrena, e ao mesmo tempo tão leve.
Depois veio o estrondo daquele clarão cego, e o calor, e o frio momentâneo depois da primeira onda, fazendo com que, uma a uma, as defesas fossem se desfalecendo, caindo, rasgando-se como os gritos loucos que ele ousava gritar sem mexer os lábios, um grito por dentro, derretido, escorrendo pelas janelas que ele deixara abertas na chuva fina que parecia cair dentro(em volta, sobre, tanto, sempre) de sua própria memória.
Havia então defesas, e havia memória. Qualquer coisa de nobre e bonito que servisse de forma empoeirada como um atestado da vaziez que era às vezes tão intrínseca e, às vezes, tão repentina. E todos os escudos, e os altos muros de ferro e pregos negros, grossos, enferrujados, e todas as lanças, e os arqueiros por trás das muralhas, foram assim caindo, perecendo um a um, como se a luminosidade lhes fosse proibida e mortal.
Quando os raios de luz pura cessaram, estava completamente nu. Limpo. Não sentia fome, nem frio, se bem que chovesse lá fora e lá dentro. Os olhos fechados, os pés sensíveis ao toque do piso que era frio, ainda que não de todo desagradável. Havia vento, talvez uma fresta na janela. O som repetitivo de um gotejar próximo. E perfume?
Talvez sentisse perfume. Não diferente daquele cheiro de terra antes seca, ou da madeira velha, comprimida e rachada pelo tempo. Mas um odor renovado, um qualquer cheiro de novo, de renascença. Pensou então que era estúpido pensar em cheiro de renascença, já que não conhecia o cheiro e os detalhes e as rachaduras e as máculas de pedaços de renascença, mas não importava. Renascia, lançando-se de dentro para fora em um cavalgar lancinante e frenético, ultrapassando as barreiras de seu próprio corpo cego e sem tato.
As defesas haviam, portanto, caído. Disso ele sabia. Sabia também que lhe restara apenas seu corpo, e seus passos, que ele tratou de experimentar hesitante. Igualmente hesitante era seu respirar, como se o ar novo doesse no peito enegrecido de fuligem antiga. E então se deu conta de que falava chorava ardia sentia pensava gritava sem vírgula:
-Eu quero a necessidade de me ter e me fazer sem teus gritos e sem tuas falhas e sem meus gritos e minhas falhas e meus pés sujos e minhas unhas esquecidas de cuidado e de amor chorado no colo e sem cessar o clarão que liberta e machuca e repara e me dói e faz crer que você se faz morta mas limpa dentro de tudo o que existe na pele na fala no hálito na lama na cama sua minha nossa.
Calou-se por um momento, pra depois dizer com leveza no rosto e na alma:
-O que constroem teus risos é muito maior que a vontade de te matar aos pouquinhos dentro de mim, embora doa.
Depois pulou pela janela aberta e caiu até que não se visse mais nada.
Ribeirão Preto, 24 de outubro de 2011
Ribeirão Preto, 24 de outubro de 2011
