quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Soldadinho de Chumbo


Eu caminhava absorta e quase não vi que alguém deixara cair na calçada um chaveiro de metal com um soldadinho de chumbo.  Achei melhor não tocar nele e seguir adiante, ignorá-lo por completo.
Acontece que quando a cabeça começa a tramar estórias, é como coquinho na descida. Afinal, o chaveiro devia ser de alguém que teve uma briga com a namorada no carro, que devia estar estacionado ali naquele lugar ermo de madrugada. Então eles brigaram, e ele jogou o soldadinho à sua própria sorte, já que com certeza fora um presente dela. Ou o chaveiro podia ser de um velho de olhos azuis que teve um brinquedinho carinhosamente guardado pela mãe – que Deus a tenha – por muitos anos, até que fora encontrado no fundo de uma gaveta pela irmã mais nova logo depois do funeral , quando ela estava dividindo entre os irmãos as pequenas lembranças que restaram. Ele transformou em um chaveiro porque o que é que se faz com um soldadinho de chumbo solitário? Fato devia ser que ele sempre se lembrava dos primos brincando com ele na infância toda vez que acariciava o chaveiro. E culpava a mãe por ter guardado algo que agora o aprisionava em lembranças que ele nem queria mais ter. Ou então o chaveiro nada mais era do que uma réplica muito da mal feita, que acabara de ser comprada na padaria pela mãe do menino luxento que, imediatamente após conseguir o que almejava, desinteressou-se.
Acontece que quando a cabeça começa a querer entender as estórias que tramou, é como bola de queimada que bate na boca do estômago: dói, faz buraco.
Então eu dentro do carro ouvindo palavras de chumbo que jogavam fora o amor que eu sentia, eu com a chave titubeante do passado, deixando voltarem lembranças que eu havia já trancado em uma caixinha hermética. Assim como ficava escondido o cuco na portinhola marron enquanto esperávamos sentadinhos no chão chegar a hora inteira e ele saísse cantando. Eu, movida a carência crônica, birrando por qualquer porcaria só pra me sentir amada para, em seguida, descartar como era de se esperar.
E nada matava a fome, porque o buraco não era no estômago, era na loucura que rondava as idéias e suas implicações. Durante todo o dia, não conseguia desgrudar da mente o soldadinho de chumbo abandonado. Desesperador a ponto de ter vontade de voltar lá e tomar posse dele. Desolador a ponto de desejar que nunca o tivesse visto.
Quase não vi. “Mas o quase não deixa”**, como cantava Zé Geraldo.


** Passageiro
               (Zé Geraldo/Rui Baiano)
Em um mundo desfeito, o despeito é um direito
A dor é danada, me pegou de jeito
Com a minha esperança, que é uma lembrança
Me lembra a passagem e passou por passar.
Passageiro foi tempo que tanto tentei
Transformar o meu tudo pra te ver sorrir
Passageiro fui eu, em caminho de flores,
Que era teu corpo a me conduzir
Os meus passos eram calmos, minha voz era salmos
Num canto de santo em louvor ao amor
Em meus braços vazios, pedaços de sonhos
Passageiro fui eu, quase morri de dor
Mas o quase não deixa quem ama de fato
Morrer sem retrato da cara do amor
Inventou uma ponte pelo meu caminho e por ela eu vou.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

NÃO É NÃO

Eu tinha certeza que as coisas iam se manter normais, como prometeram nos últimos três dias. Mas veio aquele temporal que derrubou o grande ipê, fechando a rua e acabando de vez com o tapete branco que se curvava aos transeuntes no final do inverno. Veio a falha na luz, a molhaceira na varanda, o cachorro pingando de molhado e carimbando suas patas na sua camisa branca, os trovões sacudindo os vidros e espalhando desolação pela manhã do domingo.
Nem o aroma de pernil assando evitou a bomba da melhor amiga arranjando novo par para aquele que eu nem me acostumara ainda a não ser meu par. Nem a cerveja gelada acalmou os ânimos dos que se puseram a discutir filosofia na hora da fome. Nem toda confusão das louças bailando na pia depois do almoço foi capaz de abafar o grito do amor desamarrando as correias. De novo.
Mas não tinha morrido?
Só parecia. E ali ficou a barba mal feita lembrando os lençóis esporrados e as curtas noites. Ali ficou a sobremesa esquecida lembrando o desdém de quando ainda se tem. Ali caiu a noite, sem chuva e sem gente, lembrando a escolha equivocada.
Volta comigo?
Não. Sem argumentos, o carro flutuou devagar pelas curvas da avenida silenciosa. Dormiu do outro lado da rua, enquanto o ipê também reclamava o seu antigo lugar. O sono veio aos tropeços, rolando nas fronhas, nos fatos, nos flatos.

PROCURA-SE NOVO AMOR PARA ESQUECER ANTIGO

Mas tem que ter brilho na oratória, suavidade no afago, muitos quilates na história de vida. Tem que divagar por filosofias e crenças como folha solta sobre a água. Tem que fincar pé nas convicções como eucalipto enterrado em fazenda velha, fazendo papel de poste de luz. Tem que deitar feito rei, tem que deitar feito súdito.Tem que ser destemido na hora de sentir, tem que ser patife na hora de partir. Senão, não me emociona, não me empolga, não me convence, não me faz esquecer.